segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Adestramento Cultural*

por Alessandro Visacro**

A tendência natural de restringir as profundas transformações advindas da era da informação ao impacto de modernas tecnologias e à economia globalizada limita a percepção da verdadeira amplitude das mudanças sociais ora em curso. Contrariando as expectativas daqueles que apostaram no "fim da História", o fenômeno da globalização motivou, justamente (como um de seus efeitos não previstos e paradoxais), o fortalecimento de identidades culturais locais, em detrimento da formação de uma suposta homogeneidade cultural de âmbito planetário.

Sendo o conflito armado de qualquer natureza, sobretudo, uma atividade do domínio social, reconhecemos que as transformações das sociedades (e entre elas) afetam, necessariamente, a conduta da guerra. Assim sendo, podemos constatar que, no curso das operações militares, peculiaridades da cultura local vêm adquirindo relevância cada vez maior. Nesse contexto, dá-se o advento da inteligência cultural, conhecida, também, por inteligência etnográfica, atividade sistematizada, destinada a subsidiar o processo decisório e a apoiar ações nos níveis político, estratégico e tático.

Em conflitos pretéritos, a percepção do componente cultural era deixada, aleatoriamente, a cargo do gênio de determinados comandantes em campanha, dentre os quais podemos destacar T. E. Lawrence ("Lawrence da Arábia"), assessor britânico durante a Revolta Árabe (1916-1918). Porém, o moderno campo de batalha não aceita tamanho empirismo. Para Megan Scully, "o conhecimento da cultura e da sociedade do inimigo talvez seja mais importante do que o conhecimento da sua ordem de batalha".

Até mesmo sociedades multiétnicas negligenciam, comumente, a análise cultural, apegando-se a preceitos etnocêntricos, em detrimento do uso hábil e competente da "ferramenta cultural". Nos cenários atuais, esse tipo de postura obtusa e intransigente pode afetar, decisivamente, o curso de uma campanha militar, antes mesmo do desdobramento de tropas no terreno.

Em ambientes onde prevaleçam riscos de natureza assimétrica e intensa atuação de atores armados não estatais, nenhuma força poderá prescindir de um eficiente adestramento cultural. Portanto, no século XXI, líderes competentes deverão demonstrar, necessariamente, acurada percepção do componente cultural em todas as operações militares, onde quer que elas se desenvolvam – desde as "etnorregiões" que abrigam culturas autóctones, como as nossas terras indígenas, até as favelas do Haiti, por exemplo.

Com muita propriedade, o General de Brigada Álvaro de Souza Pinheiro assegura que "o conhecimento cultural tornou-se impositivo, porque é, atualmente, um poderoso multiplicador de forças. Significa muito mais do que o mero domínio de línguas. Consubstancia-se no conhecimento histórico, costumes sociais e religiosos, valores e tradições. Não raro, esse conhecimento torna-se mais importante que o conhecimento fisiográfico do terreno. A empatia transformou-se numa poderosa arma".

Acertadamente, os soldados vêm recorrendo a antropólogos e a outros cientistas sociais, com o intuito de melhor adequar as operações militares a realidades culturais discrepantes, respeitando as idiossincrasias étnicas e regionais, a fim de assegurar a plena consecução de seus objetivos no teatro de operações. Essa conscientização já se incorporou à doutrina militar de alguns países.

Especialistas advogam que os conflitos armados no século XXI não se restringirão aos aspectos puramente militares da luta. O componente cultural das operações militares vem adquirindo uma importância crescente. O advento da inteligência etnográfica e a constatação da necessidade de prover adestramento cultural às tropas corroboram essa assertiva. Ainda que o povo brasileiro, graças à sua formação histórica, possua habilidade intercultural inata, é bastante temerário acreditar que essa virtude, por si só, seja suficiente a ponto de dispensar um treinamento robusto e sistematizado.

*Publicado originalmente em
http://eblog.eb.mil.br.

**Coronel do Exército Brasileiro.

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